light gazing, ışığa bakmak

Monday, May 27, 2013

o marquês

"Conheço muita gente que se engana propositadamente nos nomes dos amigos menores. É um dos truques dos aristocratas profissionais. Não é o caso do marquês, que se não lembra de nada, nem dos nomes dos amigos nem dos nomes dos inimigos.
- Pois eu ando a experimentar um carro novo que comprei ontem. É uma maravilha...
- Que carro é?
- Um Mercedes 300 SL. Você não imagina o que aquilo anda... Olhe que me vejo grego para o segurar na estrada. Foge de mim, e olhe que eu gabo-me de guiar bem, guio como poucos... Pois acredite que me vejo grego para segurar aquele carro. E tem uma raça... Você já olhou bem para ele? Tem uma raça impressionante.
- E quanto custa um objecto desses?
- É caro, muito caro, mas eu entendo que se deve, de vez em quando, fazer um gosto ao dedo... Não acha? A vida não pode ser só trabalhar, homem. Para que serve o dinheiro? Além disso, há outro problema em que temos de pensar. Tenho dito muitas vezes que temos obrigações especiais, mesmo muito especiais. Não acha? O que eu quero dizer é que temos obrigações de dar dinheiro a ganhar aos outros e de ajudar os artistas, que isto dum carro como este é uma autêntica obra de arte. Agora já ninguém tem fortunas como havia antigamente, como havia na Idade Média. Nesse tempo, as famílias nobres podiam sustentar pintores e escultores... Até houve nesse tempo algumas famílias formidáveis... os... como é que eles se chamavam... os... não importa... você sabe... aqueles que sustentavam à sua própria custa tantos pintores e tantos homens de talento... Agora nada disso é possível e pena é que o não seja. Vá aos grandes museus, como aquele de Madrid, e fica logo a ver como essa gente ajudou as artes do seu tempo. Agora nada disso é possível mas, dentro daquilo que se pode... De qualquer forma a minha Mercedes é uma autêntica obra de arte. Dá 230, ao cronometro... Estou a dizer-lhe que não sou capaz de o aguentar, ó Manuel, trazes-me outro «whisky»? Igual a este, ouviste?
O Dr. Martins ouviu tudo isto sem tirar os olhos do marquês. Quase que o oiço pensar. Mete-se na conversa.
- V. Ex.” desculpe a minha pergunta, mas despertou a minha curiosidade. Quanto gasta esse carro?
- Quanto gasta?
-Sim, qual é o seu consumo?
- Não é muito elevado. Claro que isso depende de quem o conduz. Nas minhas mãos deve gastar à volta de 15 litros... Isto não é certo, porque como só o comprei ontem ainda não tive tempo para fazer contas.
- Deve ser um carro maravilhoso. Eu, se pudesse, também comprava um carro assim.
- Não é um carro para toda a gente. Como não podia deixar de ser, é um carro para entendedores, mas é uma verdadeira maravilha.
- Gostava de o ver. V. Ex.a tem-no aí fora?
- Está aqui no largo. Tenho o maior prazer em lho mostrar. Quando acabar de jantar vamos vê-lo. V. Ex.a gosta de automóveis?
- Gosto de tudo o que é bom.
- Eu também sou um pouco assim. Gosto de tudo o que é bom: bons quadros, bons automóveis, bons vinhos, bons... bons... tudo quanto é bom.
--V. Ex.a deve ter bons quadros.
- Tenho. Tenho uns quadritos. Não lhe posso dizer que tenha muitos, mas tudo quanto tenho é bom. Gosta de pintura?
- Quando é boa.
- É como eu. Olhe que ainda no outro dia, no Louvre, vi um quadrito muito semelhante a um que lá tenho em casa e estou certo que é do mesmo pintor. O meu não está assinado mas não me engana. Tenho um instinto especial para o que é bom. É por isso mesmo que vou aos museus. O Louvre é muito bom. É uma lição ir-se lá! Conhece?
- Fui lá no Verão de 54.
- Pois eu vou lá bastantes vezes. Sempre que estou em Madrid vou lá.
- Em Madrid?!
- Pois. Mas se gosta de quadros há-de ir a minha casa ver os meus. Desde já lhe digo que é uma colecção modesta. Nada de extraordinário, mas tudo bonzinho.
- Tenho o maior prazer em ir a casa de V. Ex.a e, se me permite, levo o meu rapaz, que gosta muito destas coisas de arte. É de família... Já minha esposa também faz muito gosto nestas coisas.
- Havemos de combinar isso. Manuel, trazes-me outro whisky»?
- Quando?
- Como?
- Quando é que poderíamos ir a casa de V. Ex.a?
- Qualquer dia. Tem um cartão? Dê-mo que eu um dia destes telefono-lhe.
- Se pudéssemos combinar um dia...
- Neste momento é-me impossível, porque ando tão ocupado com a rodagem da Mercedes, que nunca sei quando estou em casa. Amanhã vou ao Porto para a rodar. Durmo e volto depois de amanhã.
O Martins tira a carteira do bolso e dobra um cartão que dá ao marquês.
- Pois fico-lhe muito agradecido. Creia que tenho o maior prazer em ver a sua colecção, sr. marquês. O maior prazer.
- Se V. Ex.a já jantou, vamos até lá fora ver a Mercedes?
- Às suas ordens, sr. marquês.
Levantamo-nos todos e saímos. O carro do marquês está parado no largo. O Martins ouve todas as explicações técnicas com avidez. Fez perguntas. Interessa-se pelos faróis, pela mala, pelo motor. Senta-se lá dentro e salta para cima e para baixo a fim de experimentar os assentos.
- Pois deixe que lhe diga, sr. marquês, que o invejo. Isto sim! Isto é um automóvel!... Eu gostava muito de ter um igual, mas é claro que o não saberia conduzir. Isto é só para entendidos.
O filho do Martins não faz uma única pergunta. Está um pouco afastado e segue com um misto de atenção e de desprezo os gestos do pai. Leio-lhe nos olhos que, além de desprezo, há, também, ternura, aquela ternura que os filhos têm pelos pais e que se mantém para além de todas as decepções.
Pobre Martins! O filho lê-o como quem lê um livro aberto...
O marquês entra para o carro e vira-se para mim.
- Você importa-se de me pagar as minhas bebidas? É que se você mas pagar eu sigo já para Cascais.
Tira da carteira uma nota de cem escudos e faz o gesto de ma entregar mas o Martins agarra-lhe o braço.
- O sr. marquês não me faz esta desfeita... Quem o convidou fui eu. Em sua casa, quando eu lá for, bebo o seu «whisky» com muito prazer, mas aqui quem paga sou eu. Nem pense mais nisso.
Voltamos os dois ao bar sem trocar uma palavra. Mando vir a minha conta. Em cima da mesa, ao pé dos copos, está o cartão que o Martins deu ao marquês. Durante uns segundos, ninguém diz nada. O Martins chega-se para trás na cadeira e respira fundo. Está com cara de quem fez um bom negócio ou de quem acaba de realizar uma ambição antiga. Os seus olhos percorrem o bar, examinam o filho e a rapariga, caem sobre a mesa, dão com o cartão que o marquês se esqueceu de levar. Olha para mim e, vendo que eu também vi o cartão, diz num tom de voz que não consegue esconder o despeito:
- Condes, marqueses, duques... Nunca percebi para que serve essa trampa toda. Andam para aí a armar e nem sabem ler. Do que isto precisa é duma limpeza geral... Duma revolução que acabe com esta trampa toda...
Cá fora está uma noite linda.
Subo a rua e encaminho-me para casa. Passa por mim um operário trauteando um fado.
«E à noite, o vento, é meu irmão...»"


Sttau Monteiro num episódio genial em Um Homem Não Chora.

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