do capítulo da devolução
Hoje venho dizer-te que morreste e que velo o teu corpo
no meu leito, um corpo estranho e surdo um corpo
incompreensível
aquele desespero que deixou de ter forças para erguer
os portais do outro reino tristeza de menino a quem
tiraram tudo, até a tinta e as flores e o prazer de gritar
esse (foi visto) deve subsistir porque é a tua maneira
de tomar banho no cosmos, olhar o cosmos como os
que ainda podem interrogar as ondas e morrer
mas tu ainda não sabes a que ponto morreste; vais até
à janela, aspiras com cuidado o oxigénio que o espaço
te oferece, apontas rindo a meiga criatura que pela rua
arrasta a sua condição de animal fulminado
depois olhas para mim, olhas as tuas mãos, e elas
ambas, tão claras, tão seguras, são as mãos de um
soldado a arder em febre, aves a percorrer o seu novo
deserto
mas tu sabes, tu viste, e mais do que eu; a mão do
homem é doce e iluminada como a noite como um
rasto de fumo sobre os hospitais
tivemos uma história mas a história foi-se, em fileiras
angélicas e gratas, a fazer a manhã de outras paragens;
outra sombra, outros olhos semelhantes
noutro leito nas nuvens deito os teus cabelos, o teu
cansaço e a minha miséria, os teus braços e os meus,
altos como cidades, altos como flores
parou o automóvel, lá em baixo, e eu não tenho mais
que descer as escadas, fechar ainda a porta do teu
quarto, atravessar de um pulo a minha própria vida
agora posso sonhar até deixar de te ver
belo rio sem lágrimas
Mário Cesariny
em pena capital
light gazing, ışığa bakmak
Sunday, December 27, 2015
da prateleira
Publicado por
Ana V.
às
3:45 PM
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